Larissa Campos nasceu em Manaus (AM), em 1987, mas é mato-grossense de coração. Estudou Jornalismo e Direito na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Se considera uma ativista do texto, dessas que levanta a bandeira das palavras e faz da escrita um instrumento de luta, no sentido mais íntimo: as grandes e pequenas batalhas de dentro, o olhar mágico para o cotidiano, a vontade de registrar as cenas que se acendem na memória e que não quer perder. Jornalista, escritora, comunicadora e, antes de tudo, mulher, Larissa teve contos selecionados para as antologias Ser, nascer e desnascer – Enquanto Mulheres (Primavera Editorial, 2021) e Coletânea OFF Flip 2022 – Contos. O livro de contos A casa do posto (Selo Auroras, Editora Penalux) é sua obra de estreia.
Um domingo por mês, deixávamos o posto em direção ao centro da cidade. Esses passeios de fim de tarde sempre acabavam do mesmo jeito, com sorvete no cascão. Não havia telefone fixo no posto de gasolina e telefone móvel era coisa distante, item dos comerciais que passavam na TV, até então, nenhum de nós havia visto um aparelho de perto.
Nos domingos de visita à cidade, a missão principal era dar sinal de vida, mandar notícias aos parentes que viviam longe. Para essas ocasiões, minha mãe separava nossas melhores roupas, ganhávamos penteados e perfume atrás das orelhas. Depois ela se afastava um pouco e contemplava as filhas, olhando-as de cima a baixo, para ver se estava tudo como gostaria. Então entrávamos no fusca verde e a aventura começava.
A central telefônica ficava numa rua conhecida. No local, havia vários orelhões e um posto de atendimento para comprar as fichas que abasteciam os aparelhos e amenizavam distâncias e saudades. Aqueles dias tinham um significado especial para minha mãe. Eram os familiares dela que recebiam a maior parte das ligações, pois moravam em outro estado. Apesar da distância geográfica, ela sempre conseguia um jeito de se fazer presente pelo menos uma vez ao mês.
Já as ligações para familiares paternos não eram tão comuns, talvez porque sempre estivemos mais próximos deles. Por vezes, chegamos a morar na mesma cidade, até no mesmo bairro que algumas tias e primos. Sem contar que, durante parte do período em que moramos na casa-escritório, tivemos meus avós paternos como vizinhos, à frente da administração do restaurante do posto.
Minha mãe não falhava um mês na missão de dar sinal de vida. Ainda que chovesse, que uma frente fria chegasse à região, nada a desestimulava. Eu achava bonito esse gesto dela, o cuidado com as pessoas. Enquanto ela falava ao telefone, Vitória e eu corríamos entre os orelhões e rapidamente estávamos suadas, despenteadas, nem parecíamos mais as meninas arrumadinhas que saíram do posto de gasolina para passear. Às vezes, ela gritava:
— Venham falar com a avó de vocês. Ela está na linha.
E nós atendíamos ao chamado, animadas para participar das rápidas conversas para aplacar ausências.
Naqueles orelhões, eu aprendi o que era saudade. Era o sentimento que motivava minha mãe a percorrer alguns quilômetros apenas na expectativa de dizer: Oi, estou aqui. Está tudo bem. Só podia ser saudade aquilo que subia pelo peito dela e deixava a voz embargada ao ouvir um simples alô do outro lado da linha. No fundo, nunca se tratava de um simples alô.
Diante de nós, ela segurava a emoção, mas em certas situações não conseguia conter os sentimentos. Eu via lágrimas entrarem pelos buraquinhos do telefone, os mesmos que ‘conduziam’ a voz dela, e pensava onde iriam parar, se o choro seria sentido lá do outro lado.
Me recordo a vez em que ela mais chorou. Falava com o pai, a quem não abraçava havia mais de uma década. Meus avós se separaram quando minha mãe e os irmãos eram ainda crianças e, desde então, ela não teve muitas oportunidades de estar com o pai, de aproveitar a presença dele, deitar-se em seu colo, nutrir-se do carinho e amor que ele pudesse dar. Entre aqueles orelhões, aprendi também que algumas saudades não se podem aplacar e que é preciso encontrar um jeito de carregá-las sem que nos pesem tanto.
A voz do avô materno chegou pela primeira vez aos meus ouvidos naquele dia. Ele perguntava a cor da minha pele, dos meus cabelos, dos olhos, se eu gostava da escola, a matéria preferida, se tinha amigos. Entre uma resposta e outra, dizia para eu ficar atenta às tarefas domésticas, que é importante ajudar a mamãe nos serviços da casa.
Senti que ele tentava construir uma imagem da neta que não conhecia, enquanto a neta também procurava reunir informações sobre aquele homem, tão próximo e tão distante. Comecei a perguntar sobre a roupa que vestia, as cores, se o cabelo estava curto ou mais comprido, penteado para trás ou para o lado, o que costumava fazer durante o dia, se já tinha ido ao cinema, o prato preferido. Descobri que o dono da voz fazia da pesca seu ganha-pão e sabia preparar vários tipos de peixe.
Ele contou que recentemente havia fisgado um pirarucu imenso. Com o dinheiro da venda do bicho, conseguiu sustentar a família durante o mês inteiro.
— Não foi fácil pegar o monstro. Ele se debatia, não queria se entregar.
Quando o animal finalmente se cansou, teve início o desafio de colocá-lo na canoa, mas ao fazer força para puxar o peixe, a pequena embarcação virou. Não sei como meu avô agiu dessa parte em diante, a ligação chegou ao fim e deixou a história no ar, incompleta.
Desde aquele primeiro contato, o dono da voz se transformou numa imagem construída a partir de vibrações conduzidas por fios telefônicos. A esses estímulos, se somavam fotos guardadas numa caixa e os casos que minha mãe contava. Como a história do pirarucu e a ligação interrompida, a presença de meu avô seria sempre inacabada, um punhado de narrativas pela metade, reunidas num quebra-cabeça com incontestáveis peças ausentes.
Enquanto isso, os telefonemas contentavam os sentidos. Os fios traziam mais que uma voz; por eles chegava o cheiro do rio e dos peixes, a brisa amazônica a tocar o rosto e mexer nos cabelos, os estalos da brasa que se prepara para receber o alimento. Cheiros e sons de uma saudade construída a cada ligação, erguida como casa de alvenaria, tijolo por tijolo, ficha por ficha.
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Mais sobre a obra
Um posto de combustíveis de rodovia — lugar que na lembrança de quem está de passagem pode ser corriqueiro —, torna-se o porto seguro de uma família. Esse é o ponto de partida de personagens que, na verdade, por quatro anos, não partiram, se mantiveram fixos nesse ambiente incomum para uma residência. Na gerência do estabelecimento, Jorge cuida também de Maria, Silvina e Vitória. A casa do posto, livro de estreia de Larissa Campos, apresenta cenas da rotina desses habitantes. O bonito dos sonhos é vê-los crescer e ganhar a forma inevitável da realização. E isso vale para os que são grandes, e os que são pequenos, ou melhor, discretos demais para ousar importância.
Dani Costa Russo
Foto de Anna Carolina Rizzon.